a fenda no tempo por onde desaparecem os livros

A passagem do filme do Kubrick na televisão provocou o que muitas vezes acontece, ou seja, uma grande vontade de reler passagens de textos que ficaram lá atrás no tempo. Neste caso, o texto, o grande livro, perturbador e maravilhoso (que infeliz o adjetivo polémico!): como se olha agora para a Lolita, depois de a ter conhecido numa idade (minha) pouco mais do que adolescente? Como se vê agora o professor, tempo obscuro em que o nosso olhar humano e o nosso olhar animal talvez nos diga, afinal, quem somos?  

Enfim, já gozava antecipadamente a possibilidade de reler trechos do livro, aqueles momentos em que complacentes damos conta do que o tempo em nós operou. Já com a luz e o copo de vinho em situação estratégica, a sala, a estante, o canto inferior direito onde estão os russos, o Dom, A verdadeira vida de Sebastian Knight, e nada. Ainda percorri a zona central em cima, onde estão os anglófonos, e nada de Lolita. A Lolita desapareceu da minha estante. E sei bem que lá passou muitos anos, lembro-me de ter aspirado, por mais do que uma vez, o pó a uma edição do Público, já com a capa de proteção bastante danificada. Nada a fazer, a não ser aproveitar o vinho antes que oxide demais, talvez com o Dom que terá ficado perdido na memória.

Tal como no caso das meias na máquina de lavar, há para os livros uma fenda no tempo por onde eles desaparecem. Antes de me entregar ao deleite, lanço ainda um olhar à estante, e mais uma vez me lastimo. Este episódio da Lolita não é inédito, que me lembre já me interroguei, impetuosamente, da mesma forma, várias vezes: onde pára a morte em Veneza, o velho e o mar, que fim levaram os cem anos de solidão? Quando foi o caso do memorial do convento, onde o ímpeto teve quase a forma de fúria, afinal a fenda no tempo não tinha a responsabilidade: alguém o tinha esquecido na paragem do autocarro. E assim essa fenda no tempo pode ser apenas uma passagem de mão em mão que é esse, afinal, o melhor destino dos livros.


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